Retrato de Bianor Scelza Cavalcanti

Bianor Scelza Cavalcanti

Doutor em Administração e Políticas Públicas pelo Virginia Polytechnic Institute and State University; mestre em Administração Pública pela University of Southern California; e bacharel em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE). Foi diretor desta última, onde também atuou como diretor internacional (FGV DINT) até 2019. Presidiu a International Association of Schools and Institutes of Administration (IASIA) entre 2016 e 2019.

Entrevista

P./ O desenvolvimento sustentável envolve metas relacionadas ao crescimento econômico, à inclusão social e à proteção da natureza. Para enfrentar esse triplo desafio, são necessárias políticas públicas eficazes e instituições sólidas. O que você identifica como os principais ingredientes da estrutura institucional e quais são as capacidades necessárias para que os Estados possam lidar com isso?

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que estou muito feliz por estar aqui e agradecer ao CAF – Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe – pelo convite. Essa questão é obviamente fundamental. Hoje, os desafios do desenvolvimento sustentável, em seu conceito mais amplo, referem-se, na verdade, a uma convergência de políticas relacionadas ao crescimento econômico, à inclusão e justiça social e às questões ambientais. Principalmente no que diz respeito às ameaças climáticas que, infelizmente, estamos vivenciando de forma bastante intensa e preocupante. Para enfrentá-las adequadamente, é necessário levar em conta a estrutura institucional e as questões sobre a eficácia das políticas públicas.

O primeiro ponto que eu gostaria de deixar o mais claro possível é que esses três elementos de crescimento econômico, inclusão social e justiça social e políticas ambientais exigem muita integração, assim como os elementos institucionais. Quanto à estrutura institucional necessária, os fundamentos, eu diria, não trazem nada de novo, mas têm apresentado desafios, alguns até inesperados.

A estrutura institucional de Montesquieu dos três poderes agindo em harmonia não significa que não possa haver tensões em sua dinâmica, mas é preciso haver um grande equilíbrio, obviamente, em um contexto democrático. Essa é a estrutura institucional necessária. As tensões às quais me refiro foram, de certa forma, agravadas.

Tradicionalmente, por exemplo, no Brasil, o Executivo sempre foi um poder muito forte, o presidencialismo brasileiro sempre foi, mas os acontecimentos mais recentes têm levado até a um certo desequilíbrio em que o Poder Legislativo, dado o processo mais recente de radicalização, não só no Brasil, mas no mundo, tem gerado um atrito maior, uma dificuldade maior de harmonia com o Executivo. Muitas vezes, isso também leva ao que se chama de judicialização do Judiciário. Então, muitas vezes, há um sentimento de que o Judiciário excede sua função, que deveria ser basicamente a de guardião da Constituição. A judicialização de certos processos significa que o Judiciário, em muitos casos, faz política pública, o que gera atrito e impõe novos desafios.

Por outro lado, dentro de uma estrutura institucional adequada, seja em uma perspectiva federalista, de estados e municípios, ou em países que não são federalistas, mas com dimensões territoriais de poderes locais, até certo ponto, o funcionamento dessa máquina requer atributos para a formulação e execução de políticas públicas. E a política, quando formulada, nem sempre é implementada. O próprio processo de implementação pode gerar uma dinâmica de modificações. Mas espera-se que a implementação seja eficaz, no sentido de atingir os objetivos, certo? Eficiente, no sentido de atingir esses objetivos com um bom uso dos recursos. O uso eficiente, essa relação entre recursos e resultados, deve ser saudável; em grande parte, deve haver eficácia, eficiência e efetividade.

Tampouco faz sentido atingir determinadas metas e objetivos por qualquer meio. É necessário, então, ter a estrutura institucional de que estávamos falando, que estabelece leis e regulamentos; tudo isso exigirá legitimidade na ação governamental. Esses são os pontos básicos que mencionei para um funcionamento minimamente articulado dentro de um marco democrático, como buscamos na América Latina e no Caribe, e que de certa forma desenvolvemos, muitas vezes com avanços e retrocessos.

P./ Até que ponto a falta de capacidade dos estados da região está condicionando o desenvolvimento inclusivo e sustentável? Como você avalia o papel dos estados locais e intermediários e quais são as principais áreas para melhorar suas capacidades?

A capacidade necessária em todos os níveis, seja nacional, local ou intermediário no caso de estados ou distritos (distritos como na Colômbia, estados como no Brasil), é o planejamento. Quando falamos de planejamento, ele é de longo, médio e curto prazo. Há sempre a necessidade de uma proposta estratégica nacional e há muitas falhas nessa dimensão. E no planejamento não basta projetar o que já aconteceu. É preciso lidar com a descontinuidade, com as surpresas, com o inesperado, com as grandes mudanças pelas quais estamos passando em nível global da própria geopolítica, do próprio movimento do comércio entre os países, das ameaças climáticas. Tudo isso exige uma visão de longo prazo para que haja um planejamento coerente no nível da tomada de decisões.

E não estamos falando apenas da eficiência da ação, mas também do que precede a ação, que são as decisões. É aí que entra o segundo aspecto, que é muito necessário em termos de capacidade estatal e ao qual dou grande importância: a capacidade de coordenar a interdependência. Em um mundo menos complexo, que agora é coisa do passado, havia ministérios, setores bem definidos, onde determinadas decisões e ações buscavam atingir objetivos e lidar com os problemas de maneira adequada. Hoje, os problemas são mistos; dificilmente se tem uma caixa em um organograma para resolver problemas complexos.

Portanto, no nível setorial – educação, saúde, habitação, defesa nacional, segurança pública – há uma grande interação, uma grande necessidade de coordenação no nível horizontal, intersetorial, interministerial, interorganizacional e também no nível vertical, entre o governo nacional, os governos estaduais ou distritais e os governos locais.

Esse entendimento, essa capacidade de ação conjunta construtiva, tudo o que tem a ver com governo, administração pública, gerenciamento público, envolve política. A política sempre envolve graus de tensões, acordos e desacordos que exigem negociações. Essas negociações não são fáceis, na medida em que é necessário aderir a um conceito de interesse público, que é muito difícil de definir operacionalmente. Mas é sempre necessário ter em mente a busca de um entendimento do que pode representar o interesse público. E hoje vemos, na própria sociedade, que ela é muito segmentada, muito fragmentada, com interesses diversos. De certa forma, alguns estão mais bem articulados em termos de domínio econômico, de capacidade de expressão política, de articulação para fazer valer seus pontos de vista nas assembleias estaduais, na Assembleia Nacional, no Congresso, mas para lidar com esses problemas é preciso coordenar a interdependência.

Isso requer valores ou atitudes, como uma predisposição para comportamentos e ações eficazes e eficientes para que tudo funcione. Além disso, a capacidade de monitoramento ou avaliação constante para retroalimentar o sistema e fazer com que ele se corrija. Essas capacidades exigem aspectos políticos, técnicos, comportamentais e instrumentais com relação às tecnologias de gerenciamento, para que as coisas aconteçam. E quero insistir na coordenação da interdependência. Por quê? Porque os problemas atuais exigem isso. Se usarmos o conceito de cidadania, porque a administração, a gestão pública, o serviço público, os servidores públicos, os políticos, os agentes governamentais devem prestar contas ao público, à sociedade, aos grupos sociais, aos cidadãos. E o que é cidadania? um indivíduo pode ser cidadão se ele tem educação, mas não tem saúde? se ele tem saúde, mas não tem educação? se ele tem saúde e educação, mas não tem segurança pública? ele não pode sair na rua? ele está sujeito a uma bala perdida? ou ao terrorismo, a polícia invadindo, atirando para pegar qualquer um, para criar tensão ou medo na sociedade, para colocá-la contra a polícia e a polícia contra a sociedade? O cidadão precisa de ações que levem em conta esse todo.

Ao atuar com uma comunidade, é necessário que qualquer decisão para a implementação de uma determinada política pública considere e leia as implicações da interação entre saúde, educação, habitação e mobilidade, para o trabalho de geração de renda, para uma distribuição mais adequada, menos concentrada e a serviço da sociedade.

A outra pergunta tem a ver com descentralização. Bem, isso e a desconcentração. Quero dizer, muitas vezes, o governo federal está descentralizando ações. Mas outra coisa é quando há uma concentração, uma transição para o poder local maior. Isso também é cada vez mais necessário porque o cidadão ocupa o município. E nós temos grandes diferenças. A América Latina e o Caribe incluem um país do tamanho do Brasil. Temos regiões como a Amazônia, que é compartilhada com o Peru, a Colômbia, a Bolívia, a Venezuela, as Guianas. Nessas regiões populacionais, 75% dos municípios têm no máximo 25.000 habitantes. Há centros populacionais indígenas isolados.

Por outro lado, temos grandes concentrações urbanas com problemas de pobreza, privação e saneamento em um nível aceitável. Portanto, precisamos saber como lidar com eles e atacá-los. Nos países andinos, por exemplo, Equador e Bolívia, dada a importância ou o número de populações indígenas, foram buscadas soluções interessantes para institucionalizar certos aspectos do processo de governança local de forma mais descentralizada, atendendo melhor às necessidades locais e respeitando aspectos das culturas locais. Isso foi incluído nas próprias constituições. Esse foi o caso da Bolívia e do Equador. No Brasil, nossa constituição mais recente, a de 88, buscava, de certa forma, uma maior descentralização, mas tratava-se de alguns compromissos assumidos de forma mais descentralizada pelos estados, e os recursos não eram tão bem combinados.

Observamos que há disfunções políticas com relação às políticas administrativas, à capacidade dos governos locais, muitos dos quais não conseguem atender às necessidades de sua população. Muitas vezes, os órgãos de controle são mais fracos, a corrupção, o dinheiro que às vezes passa do governo federal para o governo estadual não chega às bases. E há certos municípios ou governos locais onde os recursos chegam e são mais bem administrados. Tudo isso também depende do nível de desenvolvimento das comunidades locais e do nível de industrialização, serviços, capacidade administrativa, também gerados por processos educacionais mais eficazes.

As questões financeiras e a qualidade e capacidade dos recursos humanos, que estão ligadas à educação, são de grande importância. E, às vezes, também nos surpreendemos com o desenvolvimento, por exemplo, do crime organizado, que hoje assusta as pessoas e os governos. Há uma penetração do crime organizado nos elementos de governança, nas questões do tráfico de drogas, na mineração ilegal da riqueza nacional, no fluxo de armas, enfim, novamente, todas essas políticas estão interligadas.

P./ No contexto das restrições fiscais exacerbadas pelas tendências globais, como as mudanças climáticas e o envelhecimento da população, quais estratégias você considera mais eficazes para fortalecer a capacidade fiscal dos países da região e melhorar a gestão de receitas e despesas?

O desenvolvimento de um sistema tributário adequado, de certa forma mais progressivo e não regressivo, tem a dificuldade, em nossos países, de lidar com a questão tributária de forma mais justa. Certos setores têm a capacidade, devido ao seu lobby mais ativo e forte poder econômico, de obter benefícios fiscais mais excessivos, enquanto os setores mais pobres da população sofrem mais com a falta de recursos, pagando mais impostos indiretos. Portanto, um sistema tributário mais simplificado deve ser buscado de alguma forma. O Brasil, por exemplo, é extremamente complexo e estamos passando por uma reforma tributária na qual só agora está entrando um sistema de imposto sobre valor agregado. Há também a dupla tributação, e tudo isso requer um sistema tributário mais justo, simplificado e adequado para que haja maior capacidade empresarial, no setor de serviços, de aumentar a produtividade.

A falta de uma melhor posição de produtividade está relacionada ao processo de tributação. Quanto ao problema fiscal, há também a questão da qualidade dos gastos, que, no que diz respeito à tributação, também inclui a alta evasão fiscal. Há necessidade de sistemas mais adequados, o que, com o desenvolvimento da tecnologia, está acontecendo de forma mais apropriada. Por exemplo, com o faturamento eletrônico que foi desenvolvido na Colômbia e também no Brasil para ter mais controle em tempo real sobre as obrigações fiscais de forma mais adequada.

No lado das despesas, também são necessários controles mais eficazes. Fizemos progressos nesse aspecto, sim. Em todos os nossos países, de alguma forma, fizemos progressos técnicos com tribunais de contas mais bem equipados, que introduziram auditorias de desempenho, que não estão apenas ligadas a aspectos da legalidade específica das despesas e à questão de saber se as normas legais estão sendo cumpridas, mas também analisam o desempenho, se esses investimentos e despesas estão gerando os resultados esperados em relação aos programas. . Houve um aumento, uma melhoria, mais treinamento de pessoal, mais treinamento e desenvolvimento de funcionários públicos, mais internalização das técnicas necessárias, mas ainda há um longo caminho a percorrer, muitos recursos que saem do governo federal muitas vezes vão para os governos locais ou certos programas federais também são desperdiçados, não cumprem aspectos de rastreabilidade, ou seja, não se sabe para onde vai o dinheiro e quem é responsável por esses recursos. As obras estão sendo concluídas, então há um volume de obras espalhadas por todo o país, de obras inacabadas. Pontes, viadutos, estradas, o que foi planejado para ser construído em três, quatro anos, às vezes leva dez ou quinze anos e não é concluído. Então, muitos recursos são perdidos.

Na América Latina e no Caribe, há países pobres, como o Haiti, e países ricos, como o Brasil, onde há estados pobres e ricos, como São Paulo. Mas há problemas em termos relativos em todas essas circunscrições político-administrativas. É preciso haver uma preocupação maior com o desvio de recursos. No Brasil, há movimentos nesse sentido. Muitos são até criticados porque se enquadram no exemplo que mencionei sobre a judicialização dos processos administrativos, mas o sistema de justiça, o Superior Tribunal de Justiça, está exigindo maior rastreabilidade dos recursos previstos no Congresso para serem gastos por meio de decisões de suas comissões ou das verbas dos deputados para serem gastas, conhecidas como emendas. Portanto, há toda uma necessidade de aperfeiçoar esses sistemas. E volto a esse ponto. Sim, eles evoluíram. Em todo o continente, houve um progresso considerável, com equipes mais bem treinadas, órgãos de monitoramento e supervisão mais bem equipados. Sem dúvida, houve progresso, mas ainda há um longo caminho a percorrer.

P./ Em situações em que as soluções técnicas são claras, mas os acordos políticos e sociais para implementá-las não estão consolidados, como é possível fortalecer a capacidade política dos Estados para liderar e manter as reformas?

Como é possível fortalecer a capacidade política dos Estados de liderar e manter os reforços? De certa forma, a gestão pública, a governança, exige muita sensibilidade por parte daqueles que estão no poder, mesmo no executivo, para se conectar com a sociedade. A sociedade também está desenvolvendo instâncias de mobilidade, grupos de maior mobilidade, capazes de influenciar o sistema político.

Uma lição que acho que nossos países aprenderam é que quando a crise chega a um ponto de crise, o elemento político, por ser um elemento político, tem um certo nível de sensibilidade. Quando a crise é muito grave, os próprios políticos começam a se movimentar de forma diferenciada, mais positiva, para superar o caos que poderia se instalar de forma mais definitiva. Esse é um processo de tensões, mas que evolui à medida que há uma demanda maior, uma manifestação maior da sociedade em relação ao sistema político.

Há uma grande crise de credibilidade e representatividade em muitos de nossos países. As populações não sentem um grau aceitável de confiança em determinados congressos e assembléias. A desconfiança às vezes vai além do núcleo político do congresso legislativo, mas também se estende ao sistema judiciário como um todo, ao executivo e às instituições em geral. Essa crise de representatividade também tem muito a ver com os partidos políticos. Espera-se que os partidos políticos sejam programáticos.

Primeiro, que eles não sejam tantos que atrapalhem todo o processo de articulação política necessário para a eficácia do sistema de governança de um país, de um estado, de um município ou do que quer que seja. É preciso que os partidos tenham e se comprometam com programas que não sejam o que chamamos de fisiológicos, o sistema de «levar daqui para lá», de tudo no curto prazo, tudo se ganha ou se perde agora, nesta legislatura, e todo o pensamento e energia na próxima eleição. É aquela situação em que não há nem tanto mar, nem tanta terra. Ou seja, o político profissional, no momento em que é eleito, já começa a pensar na sua reeleição, seja no Executivo ou no Legislativo. Dentro de certos parâmetros, isso é normal, pois eles vivem do voto. Agora, como isso é feito? Pode haver variações que chegam a extremos muito perigosos, a conluios absolutamente fora da lei, crime organizado e assim por diante. Isso está acontecendo no Brasil hoje, no México, na Colômbia. É possível mudar esses processos, como, por exemplo, na Colômbia, sobre a qual acabei de falar.

Na Colômbia, há problemas de violência, sim, mas houve um pico de confronto do poder do Estado que conseguiu superar a grande crise de grupos poderosos que queriam influenciar o Estado e controlá-lo de fato. O país superou esses momentos dramáticos nesse sentido. Agora, é preciso muita articulação, a busca de maior confiabilidade, a capacidade de diálogo e não de polarização. E todos nós, não só em nossos próprios países, mas também no exterior, passamos por polarizações. Vimos nos próprios Estados Unidos, naquela que é considerada a maior democracia do mundo, momentos impensáveis de polarização. Eu morei e estudei em Washington, na capital, na Virgínia, na região de Washington, e como estudei gestão pública, administração pública, tive muito a ver com isso. Eu estava sempre indo ao Congresso e conversando lá, vendo grupos de estudantes de todo o país visitando com frequência o Lincoln Memorials. E, de repente, vimos o que vimos na invasão do Congresso, que era o mesmo que no Brasil. A polarização teve um impacto enorme. Mas aí vem o ponto a que você se referiu em sua pergunta.

Em algum momento, os políticos têm sensibilidade política. E quando as coisas se tornam dramáticas, eles são capazes de conversar, de voltar ao diálogo, de encontrar formas de diálogo político que são necessárias para que a administração funcione. Ela pode funcionar com maior inteligência técnica, as tecnologias estão cada vez mais disponíveis, mas a administração pública, na gestão pública, está sempre ligada à política. E os bons administradores ou gestores públicos funcionam como uma roda de transmissão, são capazes de fazer a ponte, de transmitir aquilo que o político muitas vezes sonha e quer com resultados adequados.

P./ As tecnologias emergentes e a inteligência artificial prometem melhorar a eficácia do Estado. Que oportunidades e riscos você identifica em sua adoção para fortalecer as capacidades do Estado? Como acelerar sua implementação de forma a promover a eficiência e a equidade, garantindo o uso responsável?

O primeiro ponto importante é que precisamos desenvolver uma cultura na sociedade, no setor público, nas interações com o setor público e nas experiências de interação com empresas privadas. Precisamos acreditar na ciência. Esse é o primeiro ponto. Esse é o elo: ciência, tecnologia e aplicação. Ciência aplicada. Essa relação é fundamental. No passado, quando se falava em gerenciamento, falava-se apenas em eficiência. Mas você pode fazer as coisas com mais eficiência, mover-se com mais eficiência e economicamente para o abismo, porque a decisão anterior não foi a correta. A tecnologia, hoje, o computador, quando foi introduzido, tornou as coisas mais rápidas. Mas isso mudou. O computador deixou de acelerar apenas os processos de administração de pessoal, de recursos humanos, e passou a acelerar certos aspectos processuais da prestação de serviços públicos.

Hoje chegamos ao ponto da inteligência artificial, onde ela está alimentando o quê? As decisões, o processo decisório. E acreditamos que esse desenvolvimento da cibernética, da inteligência artificial generativa, em que voz, som, imagens e dados começam a interagir efetivamente. Essa interação múltipla gera a capacidade de criar grandes bancos de dados que podem informar decisões críticas, cada vez mais, que se aproximam cada vez mais da capacidade das pessoas, homens e mulheres, de tomar decisões.

Isso pode realmente nos ajudar muito a lidar com questões complexas. Mas, por outro lado, oferece os perigos que já estão se tornando presentes e exigem regulamentação. Todo desenvolvimento tecnológico, desde a primeira Revolução Industrial, teve momentos em que o desenvolvimento tecnológico exigiu regulamentação. E não é diferente com as questões que podem surgir com esse desenvolvimento que estamos vivenciando agora com a inteligência artificial, até mesmo com a inteligência generativa. Por exemplo, a questão de saber se podemos usar a inteligência artificial em processos de seleção, para bolsas de estudo ou para emprego no setor público ou privado, ou seja, é válido entregar decisões dessa natureza à inteligência artificial ou é possível, adequado, dentro de certos parâmetros? Que parâmetros são esses?

Surgem perguntas sobre questões genéticas ao lidar com a vida, a morte, o desenvolvimento de medicamentos e também sobre a autoria e a remuneração pela autoria. Ou seja, até que ponto houve uma contribuição do elemento humano e como isso é compartilhado em termos de resultados econômicos e financeiros, porque é assim que a lógica da sociedade funciona. Eu vejo isso como tudo era visto no passado. Desenvolvimentos tecnológicos que nos trouxeram muita felicidade e, em outros momentos, dor. Os aviões foram usados para uma mobilidade mais adequada em nível global, mas também para a guerra e a violência, a administração da violência.

Eficaz para garantir o uso responsável de novas tecnologias? Acho que é a regulamentação, os processos realizados para que os parâmetros mais adequados possam ser identificados. Há necessidade de uma análise o mais sofisticada possível. Isso também requer o uso de modelos matemáticos adequados. Acredito que seja necessário o intercâmbio de informações entre projetos-piloto, entre as experiências de diferentes países, a fim de aperfeiçoar os controles e a regulamentação. Vejo isso como um processo contínuo, muito rápido e intensivo.

P./ Em sua opinião, que papel as organizações multilaterais devem desempenhar para melhorar a qualidade das políticas públicas na América Latina e no Caribe? Em que medida elas podem contribuir para a geração e a disseminação de conhecimento e para o fortalecimento das capacidades estatais na região?

Organizações multilaterais, o multilateralismo, creio eu, foi efetivamente consolidado. Muitas organizações multilaterais desempenham um papel nos processos educacionais, trazendo conhecimento, por exemplo, em gestão pública. Na América Latina , durante muitos anos, as organizações multilaterais financiaram cursos, e cursos muito importantes, por exemplo, sobre orçamentos, a capacidade dos governos de desenvolver pessoal treinado para gerenciar orçamentos públicos, implementar sistemas de orçamento público, implementar sistemas de gestão cultural, museologia e coisas importantes em termos de identidade nacional, a visão histórica de um determinado país e seus elementos culturais, seu patrimônio cultural.

Em muitas dimensões, como na engenharia, por exemplo, tive a sorte, a honra, inclusive, de participar de um importante movimento voltado para a gestão integrada de recursos hídricos. Essa é uma área muito complexa, sujeita a conflitos no uso da água, porque a água alimenta a agricultura, a irrigação é o maior uso, mas também gera energia elétrica importante, transporte fluvial, alimentos para as indústrias, hidratação animal, consumo humano, turismo, pesca, produção de alimentos, então imagine quantas coisas. Então, imagine quantas coisas, como podemos gerenciar esse recurso de forma integrada? Esse era um problema muito sério que compartilhávamos na América Latina.

Na Argentina, um excelente centro de gerenciamento integrado com uma experiência muito boa em Mendoza. Na Venezuela, em Mérida, uma cidade universitária nas montanhas, também havia um centro voltado para o gerenciamento integrado. A CEPAL, uma organização multilateral, teve um papel importante na articulação da inteligência dessa área, de engenheiros de recursos hídricos, administradores, economistas, para buscar soluções de gestão em nível de bacia, para fazer com que os comitês de bacia pudessem resolver os conflitos desses usos conflitantes, para introduzir sistemas de pagamento, uma racionalidade econômica complementar ao sistema de concessão, que é um sistema de comando e controle. Tudo isso para gerar leis, ou, no caso brasileiro, a Lei 9433, se não me falha a memória, para ordenar essa gestão integrada. Chegamos a um ponto em que nenhum de nossos países pode gerenciar tudo. O aprendizado mútuo permite encontrar soluções mais rapidamente, como a modelagem institucional no exemplo que estou dando, mas também envolve aspectos técnicos de engenharia hídrica para reunir tudo isso, organizar, criar espaços de diálogo. E as organizações multilaterais fazem isso muito bem, gerando contribuições para grupos ou associações acadêmicas e científicas.

Há críticas às organizações multilaterais. Por exemplo, a ONU, porque os conflitos ocorrem, a violência ocorre de forma bárbara. No século XXI, estamos presenciando confrontos muito dolorosos, tanto em quantidade quanto em dramaticidade. E a ONU é criticada pela forma como seu sistema de segurança é institucionalizado, o que a torna incapaz de tomar decisões possivelmente mais adequadas e aplicáveis. Estamos procurando as questões climáticas, os espaços de discussão para aumentar mais rapidamente a viabilidade financeira da transferência dos países mais ricos para os mais pobres, que são os que mais sofrem com os eventos climáticos críticos. E grande parte do problema climático é gerado pelas nações mais ricas. Mas essa negociação não é fácil.

Por sua vez, a negociação de carbono está avançando. Tudo isso requer assistência, capacidade de articulação, um certo exercício de liderança, conduzindo, de certa forma, processos complexos que envolvem diferentes países, muitas vezes ideologicamente diferentes, com culturas diferentes. Mas essas organizações multilaterais têm um atributo fundamental, que é o fato de serem também multiculturais. Aqueles de nós que trabalham muito internacionalmente aprendem a ver as diferenças entre os seres humanos de acordo com suas origens nacionais, culturais, mas também desenvolvem a habilidade, a capacidade de reconhecer a universalidade do ser humano, o que todos nós temos em comum.

Os funcionários que trabalham para essas organizações multilaterais desenvolvem competências institucionais para catalisar processos complexos, ajudar a treinar recursos humanos, gerar fluxos financeiros e acelerar grandes projetos, às vezes em caráter piloto, para compartilhar o aprendizado. Portanto, elas podem estar sujeitas a críticas, mas ao mesmo tempo têm uma grande importância, uma grande capacidade de colaboração. E todas essas organizações, com suas diferenças, passam por isso.

O senhor menciona a Fundação Getulio Vargas, que foi criada em 1946 para modernizar o processo de desenvolvimento do Estado brasileiro, da nação, em suas várias dimensões. Com o tempo, ela se expandiu e se diversificou. Começou com um compromisso mais direto com a área de administração pública. Depois, quase em paralelo, com a economia, o Instituto Brasileiro de Economia. Depois, escolas de economia. Hoje a fundação tem escolas de administração, economia e direito no Rio de Janeiro e em São Paulo, que podem ser da mesma área, mas de forma independente, sob a égide da fundação como mantenedora. Mais recentemente, a Escola de Comunicação, aqui onde estamos, a Escola de Matemática Aplicada, que é muito importante. E tudo isso alimenta o processo decisório, a capacidade de execução tanto pela geração de conhecimento, pela produção de novos conhecimentos, quanto pela transmissão de conhecimentos já codificados. Mas é até um processo interativo, porque uma coisa gera a outra. A transmissão ajuda a produção, a produção de conhecimento ajuda a transmissão. E a fundação teve e tem um papel, e eu digo isso porque ela só se justifica inovando.

A fundação não se justifica de outra forma, a não ser pelo compromisso com o país, com o desenvolvimento nacional e com a inovação. A área de economia desenvolveu a contabilidade nacional no Brasil. Em relação ao processo inflacionário, o Brasil teve uma época no passado em que a inflação era galopante, imensa, e assim como em todo hotel que você vai, no mundo inteiro, eles têm a Bíblia na cabeceira da cama, no Brasil todos os setores, serviços, indústria, produção agrícola, comércio, tinham a revista Conjuntura Econômica com tabelas para acompanhar a evolução da inflação. E depois também desenvolvia soluções de dados setoriais para formação de custos, de preços, enfim. É o que se chama de think tank

O que é um think tank? A definição operacional é a de instituições que têm a capacidade de influenciar decisões governamentais e estratégias de negócios e também a mobilização social, graças ao conhecimento que geram. Ele tem aquele efeito catalisador que eu estava falando sobre os bancos, mas não apenas os bancos, mas também as organizações multilaterais.

A Fundação tem uma grande capacidade de atuar como catalisadora das áreas de conhecimento que domina, de sua capacidade de influenciar decisões, como eu estava dizendo, e ao longo dos anos desenvolveu um patrimônio grande e muito importante. Não estou me referindo ao patrimônio que possui, seus edifícios, suas ações, mas a um patrimônio chamado credibilidade. Há um conceito de que algumas são organizações. Outras têm um caráter tão particular, importantes, reconhecidas, confiáveis, com credibilidade, que são caracterizadas como instituições. Não se trata de uma organização, não se trata de uma empresa, trata-se de uma instituição. Portanto, isso faz com que a fundação, apenas um exemplo, em uma área muito sensível como a política de defesa e segurança, seja classificada como uma organização importante para a defesa do país. Isso está relacionado, por exemplo, à inovação que mencionei.

Por quê? Porque o Brasil está desenvolvendo projetos de tecnologia muito avançada, absorvendo tecnologia de outros países, desenvolvendo a sua própria e outras que são disseminadas na sociedade, no mundo industrial brasileiro de vanguarda. E a fundação tem a credibilidade de estar envolvida nesses processos sensíveis. E isso, na área de política econômica, na área de saúde, na escola de matemática aplicada, ela desenvolve modelos para lidar com certos aspectos de políticas públicas de saúde. Tratamos de políticas públicas de educação, ajudando a desenvolver políticas educacionais nos municípios e a execução mais adequada do esforço educacional, que é fundamental, estratégico para o Brasil, como é para a Colômbia, para a Argentina, para todos os países da América Latina e, em alguns casos, para a África. A fundação tem esse compromisso fundamental. E você pergunta sobre o setor privado. Esse é um setor em construção. O brasileiro tem associações importantes. As federações das indústrias no Brasil, FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), FIEP (Federação das Indústrias do Estado do Paraná), estão organizadas em um conjunto de federações que abrangem diferentes áreas da economia e são muito importantes. E a inovação, hoje, é marcada pela relação público-privada. A fundação tem uma relação muito forte com o setor privado. Ela pode estar associada a processos de educação, de formação de recursos humanos, de ajuda em recursos de financiamento. E aí, o setor privado e o setor público, juntos, podem fazer muito pelo país.