O papel dos bancos de desenvolvimento multilaterais

Até aqui fizemos um balanço dos principais desafios de desenvolvimento passados e futuros da região. Fica evidente que são necessários esforços coordenados entre as nações, particularmente no contexto da redução de emissões e da transição energética, para enfrentar tarefas de extrema relevância.

Há também desafios intertemporais, pois, como mencionamos, os mandatos de Governo muitas vezes impedem que políticas públicas tenham continuidade, limitando sua sustentabilidade e impedindo a verificação de sua efetividade no longo prazo. O desafio de financiar o desenvolvimento se agrava diante da classificação de risco dos países da ALC, que os obriga a assumir um perfil de dívida relativamente curto: 60% das necessidades de financiamento da região estão associadas a amortizações da dívida, o que equivale a 7,9% do PIB (ver gráfico 5.10).

Gráfico 5.10 Porcentagem das necessidades de financiamento associadas à amortização da dívida

Nota:  As necessidades de financiamento são calculadas como a soma do déficit fiscal e do valor das amortizações da dívida, publicados em fontes oficiais (orçamentos nacionais, relatórios de dívida, planos de financiamento e política fiscal, conforme o caso) de cada país. Entretanto, para a Argentina foram utilizados os dados publicados no relatório mais recente do FMI sobre o país na data de cálculo. Nossas estimativas incluem dados de 19 países da região: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Trinidad e Tobago, e Uruguai.

Embora existam diferenças importantes na estrutura de capital e na governança dos bancos de desenvolvimento multilaterais (BDM) que atendem os países em desenvolvimento, esses organismos perseguem um objetivo comum: investir em projetos nos quais ninguém mais pode ou quer investir. Projetos que, além disso, são críticos para a sustentabilidade social, econômica e ambiental do nosso planeta (Humphrey, 2022). O cenário global mudou significativamente nas últimas décadas, o que levou os BDM a enfrentar seu próprio processo de transformação para atender melhor às demandas dos Governos e de outros atores.

O financiamento direto que os BDM oferecem aos governos da região é a ação mais visível. Mas, atualmente, os BDM transcenderam a oferta de financiamento concessional para oferecer instrumentos financeiros alinhados às tendências de desenvolvimento da região e às necessidades de seus clientes. No entanto, a oferta de financiamento multilateral é relativamente limitada na região: apenas 9% das necessidades de financiamento dos países provém de fontes externas, e a banca multilateral contribui com metade dessa participação1

O maior potencial transformador desses organismos reside, portanto, em sua capacidade de atender falhas de mercado e de coordenação. Isso é possível graças à sua autoridade supranacional e às suas estratégias de longo prazo, além dos ciclos políticos. Além do poder de financiamento preferencial, em escala e de longo prazo, os multilaterais complementam sua oferta de recursos monetários com apoio técnico aos Governos. Os BDM são instrumentos essenciais de política pública, com experiência global, mandato para promover o desenvolvimento e capacidade de investir em bens públicos em escala. Além do apoio e cooperação com Estados soberanos, o papel dos BDM na promoção do desenvolvimento do setor privado tem crescido rapidamente nos últimos anos. Também tem sido relevante em termos de inovação financeira, pois a banca multilateral tem sido pioneira na criação de soluções voltadas para enfrentar desafios globais complexos, especialmente em mercados emergentes e economias em desenvolvimento. Por meio da implementação de novas ferramentas financeiras, como títulos de impacto social, fundos de investimento verde e mecanismos de financiamento baseado em resultados, esses organismos demonstraram sua capacidade de mobilizar capital privado e canalizá-lo para projetos que geram impacto social e ambiental positivo.

Os BDM também fornecem à região bens públicos globais e regionais. Dois dos casos mais importantes nesse sentido são a oferta de uma plataforma de coordenação e a geração e difusão de conhecimento. 

Os bancos de desenvolvimento têm objetivos claros de médio prazo e podem assumir riscos que a banca internacional às vezes não está disposta a assumir. E ajudar os países a superar choques negativos é um papel fundamental, assim como fornecer financiamento de longo prazo para projetos nos quais o risco, por exemplo, em matéria de mudança climática ou de energias renováveis, é algo que o mercado tem dificuldade de dimensionar com precisão. Mas outro papel igualmente fundamental da banca de desenvolvimento é ajudar os países não apenas na geração de conhecimento, mas também em algo que às vezes é subestimado. Os governos das regiões mudam continuamente, a cada quatro ou cinco anos há uma mudança de governo e, em certas ocasiões, essa instabilidade faz com que as políticas públicas não tenham a presença nem a estabilidade necessárias para que possam gerar os resultados esperados.

Baseado em entrevista com Santiago Levy

Assim, a banca multilateral atua como organismo facilitador e supervisor da atuação coordenada dentro de cada país e entre países. Sua liderança, somada à sua capacidade de financiamento e apoio técnico, é fundamental para orientar os esforços de política requeridos pela agenda pendente da ALC. No entanto, a magnitude do desafio exige também que as próprias agências multilaterais coordenem seus esforços para maximizar seu impacto conjunto. Ao alinhar suas ações, essas instituições podem evitar a duplicação de recursos e esforços, maximizar o impacto das intervenções e gerar sinergias que potencializem os resultados. Recentemente, a colaboração entre o FMI e o CAF foi fundamental para a estabilização econômica da Argentina e do Equador em momentos críticos. O CAF ofereceu financiamento transitório de curtíssimo prazo a ambos os países para ajudá-los a cumprir com suas obrigações imediatas, evitando um calote que teria tido graves consequências para suas economias. Por meio desses empréstimos “ponte”, ambos os países puderam acessar programas de financiamento mais amplos e estruturados pelo FMI. O financiamento do CAF proporcionou o tempo necessário para que as negociações com o FMI pudessem ser concretizadas sem que os países entrassem em default, o que teria comprometido ainda mais sua estabilidade econômica e sua capacidade de recuperação.

Quanto à geração de conhecimento, o leque de atividades é muito amplo e abrange desde a coleta de dados e a avaliação de impacto de projetos e intervenções até a produção de artigos acadêmicos, notas técnicas, notas de política e documentos de trabalho, entre outros. Em alguns países da nossa região, a contribuição dos BDM para a produção de dados primários é fundamental. Por exemplo, na sub-região do Caribe, onde nem todos os países contam com uma pesquisa domiciliar anual, o apoio de organismos como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem sido determinante para avançar no desenho e na implementação desses esforços2. No âmbito da agenda de inclusão financeira, o CAF, por sua vez, vem desenvolvendo a pesquisa de capacidades financeiras desde 2013. Essa pesquisa fornece uma avaliação abrangente das capacidades financeiras, incluindo medições de conhecimento, comportamento financeiro e atitudes em relação ao dinheiro. Ao aplicar a mesma metodologia em diferentes países, a pesquisa também permite comparações entre países e regiões, o que facilita a identificação de boas práticas e de áreas que demandam maior intervenção3.

Além da coleta de dados, a grande maioria dos BDM conta com uma equipe de pesquisa, centralizada ou descentralizada por meio da instituição, que produz conhecimento original. A geração desse conhecimento a partir da banca multilateral tem pelo menos três vantagens. A primeira é que, ao contrário do conhecimento produzido pela academia, os BDM que operam na ALC têm conexões muito mais diretas e frequentes com o cotidiano da região. Isso permite um melhor entendimento do contexto e dos problemas dos países, além de oferecer a oportunidade de formular perguntas de pesquisa muito mais conectadas com a realidade, que orientem as operações futuras.

A segunda vantagem é que os BDM funcionam como excelentes plataformas para a disseminação do conhecimento. A conexão desses organismos com os formuladores de políticas é muito próxima, o que facilita que os diversos produtos de conhecimento cheguem aos fóruns relevantes para que as evidências orientem as políticas públicas. Essa vantagem é ainda mais concreta no caso do CAF, graças ao modelo de governança que a rege, com um diretório formado pelos ministros da Fazenda dos países membros.

Acho que o multilateralismo se consolidou de forma eficaz. Muitas organizações multilaterais desempenham um papel em processos educativos, levando conhecimento, por exemplo, em gestão pública. Na América Latina, há muitos anos, as organizações multilaterais financiam cursos muito importantes, por exemplo, sobre orçamentos, a capacidade dos governos de formar pessoal capacitado para gerir orçamentos públicos, implantar sistemas de orçamento público, implementar sistemas de gestão cultural, museologia e aspectos importantes ligados à identidade nacional, à visão histórica de determinado país e seus elementos culturais, seu patrimônio cultural.

Baseado em entrevista com Bianor Cavalcanti

E a terceira vantagem é que a avaliação rigorosa das operações permite que os BDM possam replicar e ampliar soluções custo-efetivas para os problemas da região. É por isso que, nas últimas duas décadas, os BDM passaram a dar mais ênfase à geração de evidências e à medição de impacto de suas operações. A avaliação de programas e/ou operações é o que permite aos BDM formular recomendações de política com base em evidências.

À medida que enfrentamos os desafios do futuro, a cooperação e a inovação serão fundamentais. Por isso insistimos: os BDM, com sua experiência acumulada e sua capacidade de mobilizar recursos, devem ser vistos não apenas como fontes de financiamento, mas como aliados estratégicos na construção de um futuro mais justo e sustentável. A transformação da região depende da nossa capacidade de aprender com os desafios do passado, implementar soluções baseadas em evidências e criar um ambiente no qual a participação cidadã e o diálogo construtivo sejam parte integrante dos processos decisórios. Esse é o melhor caminho para um desenvolvimento que atenda às metas econômicas e que também assegure o bem-estar social e a preservação ambiental para as próximas gerações.

Os BDM precisam seguir por esse caminho sustentados por uma agenda de conhecimento conectada ao cotidiano da região e fortemente coordenada com a capacidade de ação no território. Acompanhar a região na tripla transição — social, digital e energética — em um contexto de espaço fiscal limitado exige investimentos e políticas inovadoras e custo-efetivas. E é nesse caminho que o papel da geração e disseminação do conhecimento por parte das multilaterais, com uma visão supranacional, mas enraizada na região e voltada para a região, pode ter efeitos multiplicadores importantes. Ficou claro que uma abordagem única não é eficaz em uma região tão diversa quanto a ALC. O conhecimento a serviço do desenvolvimento é fundamental para identificar as medidas precisas e oportunas para cada país.